17.2.06

Toda A Mente É Danada (7)

- A realidade induzida tem sempre pontos de fuga relativa, mas fomos felizes neste caso. Conseguimos reconduzi-lo à linha principal da acção quando o seu cérebro a tentou controlar e conduzir.
A voz era clara apesar de não a conseguir ouvir e a sala, agora intensamente iluminada, era a mesma em que já antes emergira por um instante, embora nessa altura estivesse escura e fria. O homem que falara usava uma bata branca e era muito alto.
- A acção deve estar a atingir o clímax e então saberemos tudo o que queremos.
- Professor Heigelt! Temos problemas outra vez, e bem graves! A acção induzida foi completamente distorcida, ele fugiu! O ponto de fuga atingiu a ruptura e ele deve estar a emergir aqui.
Abri os olhos e levantei-me. Sentia-me tonto e tudo aquilo era muito confuso. Onde estava eu?
- Raios!! Temos de começar tudo de novo, Dreyfuss. Mr. Doneghan, sente-se bem?
Ele falara comigo? Sim, ele falara comigo! O meu nome é Doneghan? Não, o meu nome é Pramitt! Será?

Os ramos das árvores do imenso jardim eram a única coisa que se movia na cena enquadrada pela janela. Caía uma chuva miúda de gotas tímidas que o solo tragava sofregamente, mas eu não sentia o cheiro da terra húmida. Era impossível senti-lo porque nada daquilo existia, tratava-se apenas de uma ilusão bem feita para evitar a claustrofobia. Ali, uma dezena de quilómetros abaixo da superfície mil vezes queimada, não havia sol, nem árvores, nem vento ou chuva. Atrás do painel da janela falsa existia apenas rocha negra, crusta furada pelos vermes que nós éramos.
As memórias regressam aos poucos, uma coisa hoje, um facto importante amanhã, e de cada vez que isso acontece cai mais um pedaço da minha anterior ilusão.
Chamo-me mesmo Doneghan, Albert Doneghan, e ontem a minha esposa veio visitar-me. Trouxe-me chocolates sintéticos e um pouco de carinho, apesar de eu não a reconhecer na altura. Hoje já me recordo de alguma coisa: casámo-nos há quatro anos, antes do ataque 14, e sei que não temos filhos. O espaço também não é muito...
Estou aqui porque sou importante. Uma importância macabra, mas vital. Descobri que sou o único sobrevivente do silo Kellett e que sou assim o único ser vivo que conhece os códigos de lançamento dos mísseis que lá continuam incólumes. Se na altura do ataque não estivesse numa cápsula de manutenção teria perecido também. Tive sorte.
Nisto tudo existe apenas um problema: não me recordo dos códigos. O meu cérebro criou um bloqueio como reacção ao choque horrível que sofri. Ainda hoje não recordo coisa alguma do que se passou no silo Kellett. Eles tentaram tudo sem êxito e a última desesperada tentativa fora a realidade induzida, mas também isso falhara. O meu cérebro obstinado tinha por duas vezes tentado tomar as rédeas da história e da segunda vez quase o conseguira, se não tivesse acontecido a ruptura. Agora convalescia para nova tentativa, sem estar muito certo da necessidade de aniquilarmos finalmente o inimigo. Aqueles mísseis eram os últimos e podiam decidir a guerra longa de séculos.
Na superfície ninguém vivia, por duas razões bem fortes: ficariam expostos a um ataque e, na realidade, a vida tornara-se impossível no inferno de neve e cinza que era a Terra. Para dizer a verdade, não era só neste bunker extremo que não existia sol. Também à superfície os seus raios não penetravam a espessa camada de fumo e poeiras sempre renovada que cercava como um véu de pudor a nossa triste Terra.
Restavam poucos, inimigos sempre, enfiados como toupeiras nas suas cidades do subsolo, tentando destruir-se sempre, gastando os escassos recursos numa guerra inútil em que a razão (se existira alguma vez) que um dos lados pudesse ter já se perdera há muito, algures numa das muitas crateras da superfície.

A comida tinha gosto, e se não soubesse que provinha da síntese química diria que aquele belo peixe tinha sido pescado num mar azul banhado por um sol de Verão, mas da sopa espessa e negra, nauseabunda, que enchia os locais dos antigos mares nada vivo podia sair. Era uma boa imitação, mas nunca sulcara os oceanos e, pensando bem, aquele pedaço de matéria nunca fora sequer animado pela vida. Estava mais forte de dia para dia e a letargia provocada pelo processo de realidade induzida desvanecia-se em ritmo acelerado, voltando ao meu cérebro as recordações verdadeiras da minha verdadeira vida. Não eram grande coisa, as recordações: os meus pais tinham sido mortos no ataque 5 ao Grande Refúgio do Norte, tinha eu apenas cinco anos. Fui entregue ao cuidado do orfanato do estado e educaram-me para ser um bom soldado e saber para que serviam todos aqueles botões dos sistemas de lançamento. Fora colocado no silo Kellett com 23 anos e fora lá que conhecera Lisa e que casara um ano depois. Lisa fora visitar os pais quando se deu o ataque ao silo e isso fora o seu passaporte para uma vida mais longa. Lisa não sabia os códigos, o que era uma pena. Seria? Qual o interesse em aniquilar outros iguais a nós, escondidos em tocas como nós, que como nós lutavam sem nenhuma razão, transformados em caricaturas de seres pensantes? Não é fácil ter estas ideias num mundo que vive para a guerra. Hipotecáramos o futuro às muitas toneladas de elementos pesados deflagradas desde o início dos combates. Engoli resignado outro pedaço de peixe sintético, conformado com o mundo em que tinha de viver.
Tinha saudades de Phoebe...

Os dias passaram inexoravelmente, fazendo aproximar a data da próxima tentativa de conhecer os códigos através do processo de realidade induzida. Não saí praticamente do meu quarto, o pequeno quarto desarrumado que me tinham atribuído no hospital. Lá fora as árvores continuavam embaladas pelo vento e a chuva miúda persistia, aquela ilusão não possuía muitas variações. Vi o pequeno rato pelo canto do olho, avançando com cautela junto à parede. Um rato! Nem tudo morrera afinal, e uma preciosidade daquelas tinha de ser capturada. Lancei-me sobre ele mas o rato conseguiu escapar para baixo da pesada mesa que enchia aquele canto da sala. Tirei as roupas amarrotadas que estavam debaixo dela com cuidado, mas o rato não estava lá. O pequeno buraco no canto mostrava o caminho que tomara. Tinha de arranjar queijo! Depois lembrei-me das roupas, que roupas eram aquelas? Tirei um casaco de hospital do monte e depois recordei-me: aquela era a roupa que tinha vestida quando da primeira tentativa. O volume no bolso exterior atraiu-me a atenção. Extraí dele uma série de papéis amarrotados e notei que era papel de boa qualidade, daquele que só era usado para documentos muito importantes. Sentei-me na cadeira junto à janela e dispus-me a ler aqueles papéis. Era apenas mais uma coisa de que não me recordava.
O primeiro que vi continha números em profusão, os outros pareciam relatórios. As folhas de papel tinham um timbre, dizia Administração do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais e depois tinha apenas um nome: Walter Scherer, digníssimo. Memórias recentes de um passado que dormia voltaram para o primeiro plano da minha mente atormentada. Apenas uma maquiavélica cilada de uma máquina à beira de ser destruída. Uma névoa toldou a cena que se avistava da janela e invadiu o quarto.
- Vincent, – pensei – dispara!

As pessoas entraram de rompante na divisão acanhada e correram para o corpo inerte de Albert Doneghan.
- Depressa! Levem-no depressa para a sala de neurocirurgia antes que seja tarde, não percam tempo! – o Professor Heigelt, vermelho da excitação, olhou para os papéis que o Coronel Dreyfuss agarrava – Que papéis são esses?
- Tinha-os na mão. Este parece preenchido com as tentativas dele para descobrir os códigos, os outros são a reconstituição das suas memórias desde a altura do ataque e que você lhe pediu para fazer. Como é que isto pôde provocar uma crise?
Heigelt respondeu-lhe quando já saía do quarto:
- Só a mente dele o sabe.